O professor polvo e a jornada de regeneração do coração

O documentário da Netflix apresenta Craig Foster mergulhando numa floresta subaquática de algas na África do Sul.

O professor polvo: a regeneração do coração. Fonte: pixabay

Ao longo dos 85 minutos observamos a interação do mergulhador com várias criaturas intrigantes, mas sobretudo com um polvo, a que ele se refere utilizando o pronome feminino: ela.

Ele acompanha a vida do polvo por inteiro, as estratégias de caça, a metamorfose na troca de cores, textura e pele.

Observa, trazendo o olhar do espectador, como aquela criatura exibe uma inteligência suprema. Faz um paralelo com o polvo e os seres humanos. Se apega ao polvo, deseja salvá-la, mas resolve não interferir na natureza.

O filme é sensível. O espectador nada junto com o protagonista, torce pelo polvo, fica com raiva do tubarão, se encanta com a sensibilidade do narrador.

Craig Foster está num momento delicado de sua vida. Não fica claro o que aconteceu, mas sabemos pela narrativa que ele não mais se identificava com seu trabalho. Que seu propósito de vida não mais era.

Ele descobriu que isso afetava a relação com sua família, em especial com seu filho.

O professor polvo: a regeneração do coração. Fonte: pixabay

Ao longo da dança aquática com o polvo ele descobre um novo sentido, retoma sua paixão. O polvo ressignificou seu momento turbulento, quando as águas estão muito mexidas e nada podemos ver.

Ele relata:

Tive dois anos de absoluto inferno, fiquei doente por conta da pressão, minha mente não conseguia lidar com tudo que acontecia. Parei de filmar, o meu grande propósito estava em pedaços.

Aquele momento o mundo como conhecemos não faz mais sentido.

Nosso chamado não é o que deveria ser, aquilo que construímos com cuidado ao longo de tantos anos, todos os diplomas, certificados, as horas de estudo, valem o zero absoluto.

Entrar na água é difícil a princípio. A água gelada, entretanto, o cérebro melhora, se atualiza, o corpo todo toma vida.

Diz o narrador.

Depois de um ano você sente falta da água fria, precisa dela para viver.

O hábito é uma coisa poderosa, não damos valor aos que criamos. A meditação diária faz o efeito desejado em algum momento, mas desacreditamos, mesmo tentando todos os dias.

Duvidamos do poder de regeneração, quando nossos braços, como os do polvo são decepados. Terão utilidade novamente? Terei minha vida de volta?

A que você conhecia não.

Você mudou, o mundo até então familiar, não mais é.

Você encontra uma área desconhecida, nas profundezas da floresta, e ali um universo aparece. Incógnito. Perigoso. Desconhecido.

Você sente uma pequena mudança no ar a sua volta. Nada dramático, só uma brisa.

A calma invade sua alma, você respira tranquilidade, ainda que por um breve instante.

O extraordinário acontece quando estamos distraídos.

No segundo que nossa mente não alcança o acontecido, que processamos mais tarde, digerimos devagar.

O momento se foi, mas o efeito permanece.

O professor polvo: a regeneração do coração. Fonte: Pixabay

Autoconhecimento é regenerar.

Dar nova vida, formar-se de novo.

Regenera-se ferida aberta, machucado antigo, calo, cicatriz. Produz-se novo tecido. Nunca será como antes, mas será mais resistente.

O polvo é uma criatura solitária, não tem pai nem mãe que a ensine, ela precisa aprender rápido a enganar os predadores já que só vive por um ano.

Instinto, capacidade de metamorfosear-se, a fim de enganar os predadores são os atributos mais marcantes das técnicas de sobrevivência do polvo.

Pensamos sempre na capacidade de regeneração do polvo, mas é muito mais que isso. A criatura tem 3 corações.

Nosso coração não se regenera. O do polvo também não.

As células cardíacas que morrem (cardiomiócitos) num infarto não são recuperadas.

O ideal seria que os cardiomiócitos mortos fossem totalmente regenerados, como ocorre no peixe-zebra. A informação se encontra neste artigo.

Por isso se diz que podemos sim morrer de coração partido.

Tem até nome para isso: cardiomiopatia do estresse, conhecida como síndrome do coração partido, é a dor da perda e pode ter efeito direto sobre a saúde do coração

Não possuímos a capacidade de regeneração do polvo. Talvez por isso, guardamos nossos afetos, protegemos o que tem de mais sagrado: nosso amor. Preservamos carinho e escondemos nossas preferências.

Uma vez que o coração é exposto não pode ser regenerado, não há como fazer um novo coração e não dispomos de mais dois como reserva, como o polvo.

Tática de sobrevivência?

Não queremos morrer de amor.

O professor polvo: a regeneração do coração. Fonte: Pixabay

Morremos de várias formas, diversas vezes neste breve espaço chamado vida. Uma jornada de dores. Superação, mas não regeneração.

Interferimos no processo da vida.

Mudamos de classe, de cidade, de calçada. Trocamos o número de telefone, bloqueamos antigos amores. Protegemos nosso músculo complexo e não regenerável.

No Livro Só você pode curar seu coração quebrado, Jay leonardo observa:

Quanto maior o coração, maior será a quantidade de cacos, quando ele porventura for despeçado.Quem muito ama, tudo sente.

Sabemos que não podemos formar uma nova vida, dar a luz a um novo coração, ainda que instintivamente, presumimos que uma vez em cacos, ele não vai se recuperar; por isso nos protegemos, levantamos barreiras, evitamos aproximação.

Pule os muros, quebre as barreiras. Arrombe as portas, diz o escritor

No documentário o braço(tentáculo) do polvo é regenerado após 100 dias. Completamente, após o ataque do tubarão.

Ele se recolhe no esconderijo e fica quietinho até que se recupera por completo, sai aos poucos, com um tentáculo bebê aparecendo.

Nos recolhemos para curar nossa ferida aberta, sangrando ainda. Nossa caverna parece o único lugar seguro.

Mas nosso coração nunca vai se recuperar completamente, não há regeneração na nossa espécie.

O professor polvo: a regeneração do coração. Fonte: Pixabay

Sonhamos com um dia calmo, ensolarado, onde a esperança pode renascer. Seremos líquidos? Teremos capacidade de tentar novamente? Ou nos fechamos para sempre?

Alguém se aproveitará da brecha da carência para nos deixar em cacos de novo? Nossa sensibilidade aguçada? Nosso desejo de pertencer?

Incógnitas.

Os muros estão altos, meu amigo. E acima deles há uma cerca elétrica, circuito interno de tv: cuidado cão bravo.

No livro do trauma a cura, a escritora explica:

Ver o trauma como um processo incompleto e não como um dano permanente restabelece a esperança.

Complementa acerca do processo de cura:

Em geral a cura do trauma é transformadora não apenas sentimos ampliação da nossa consciência como expandimos a capacidade de superar futuras situações devastadoras.

Essa é a definição reconfortante do trauma apresentada.

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Aprendemos a lidar melhor com o medo. Depois da devastadora experiência, começamos a acreditar que somos capazes de superar qualquer coisa. Ou das experiências.

Elas tendem a se repetir por muito tempo, o padrão que temos, até que descobrimos o motivo da repetição.

A culpa não está os outros, mas a responsabilidade é nossa. A repetição de uma situação é nossa inteira responsabilidade.

Se não mudamos a constante a variável permanece a mesma.

Os seres humanos têm 3 alternativas: fuga, paralisia ou luta.  

Hiper vigilância e fuga são efeitos do estresse pós traumático, como o polvo que foge quando sente o predador atrás dele.

Entretanto, ele também desenvolve com o tempo novas estratégias de defesa, ele evolui com a caça do predador.

Descobre que pode subir nas costas do tubarão até que ele se canse.

Um novo esconderijo, uma forma de se metamorfosear, utilizando conchas, odores, as algas como cobertor e bichinhos diversos como aliados.

Assim fazemos.

Desenvolvemos novas habilidades após o trauma. Até que os flashs invasivos e o looping da lembrança desagradável silenciem. E por fim, vão embora de vez.

Cem ou 300 dias. Cada um no seu processo.

Não é que deixamos de estar alertas, mas não ficamos neuróticos.

A hiper vigilância dá lugar a um estado moderado de combate, depois a um leve alerta. Até que confiamos suficiente em nossos instintos, para deixar-nos levar, seguir o fluxo e aceitar o que vier, quem vier.

Mantemos nosso corpo preparado, com uma musculatura mais forte, uma alma mais madura para por fim, arriscar uma nova interação.

Precisei de 527 dias para escrever esse texto. Inúmeros filmes, documentários, séries, livros. Meditação. Perseverança e um cachorro.

Larguei o emprego, mudei de cidade, cortei o cabelo.

Arriscarei novamente.

Meu coração não está regenerado, mas certamente está regulado.

O polvo ensina o narrador a tentar novamente, a curar suas feridas, a acreditar no processo da vida. A arriscar um novo começo, a deixar entrar a luz pela fenda.

O documentário é poderoso. Assista. Sinta. Apaixone-se pelo polvo.

Depois passe aqui e me conte sua experiência, pode ser?

Boa jornada assistindo o professor polvo.

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2 comentários sobre “O professor polvo e a jornada de regeneração do coração

  1. Que texto emocionante!
    Fiquei muito eufórica ao ver o documentário. Sim, uma euforia meio encantada. Porque é assim que me reconheço faz uns anos quando vejo o delicado da vida se mostrando às pessoas, por meio de circunstâncias simples, porém, extraordinárias “enquanto as pessoas estão distraídas”. O polvo ao protagonista do filme e o próprio filme à autora do artigo.
    Que linda reflexão sobre a (sua) vida, Mônica Barguil. Sou sua fã. 💖

    1. Muito obrigada pela indicação “indicadora oficial”. Amo quando vc diz o delicado da vida! Sou sua fã também amada, uma guerreira que mantém o delicado da vida. Beijos grandes

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